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quarta-feira, dezembro 21, 2005

Aquele que tinha se perdido

Dez passos dividiam no começo da ladeira, o chão de pedras do de terra clara – coberto das folhas secas de mesma intensidade. Caiam da árvore que ficava aos fundos da casa da vó.
No final da ladeira, quer dizer, no meio – a rua ganhava forma em outra ladeira que corria entre cercas velhas, de velhas fazendas, de donos nunca vistos – tinha uma árvore de beleza maior. De delicados lilases, ela parecia fazer parte, como uma mão que puxava – só no chamar – para um redondo lago. Tomei poucos banhos. Sentir os pés serem presos nas raízes ao fundo da fria água assustava-me.
Brincadeiras de infância nunca foram um ponto louvável a mim, algo que se projetasse em minha imagem – agora, adulto – em uma divertida criança. Era feliz, sozinho. Descia correndo a ladeira de encontro com as farpas das cercas. Desce-la me impressionava sempre. Havia um casebre no meio do lago – uma ilhota. Nunca soube quem morava ali. Ficava na sombra de uma goiabeira a espera dele, ou dela. Queria saber quem era, se saia pelas ruas, atraída pelo cheiro das broas – que assava em uma fornalha na garagem de uma casa, em outra ladeira. Só que essa caia no rio – no Velho. Não pensava perguntar a ninguém quem ali vivia. Queria eu mesmo vê-lo entrar no barco, e de mansinho, chegar no meu lado.
Dos familiares paternos, muitos nasceram por aquelas bandas. Cidade pequena, vento seco no meio do dia, gente passando lentamente a pé. Povo com cara de espera – só não sei de quê. Interior tem sempre a mesma cara: nunca vi acidentes acontecerem, nunca vi anão morrendo, e as igrejas sempre lotadas. Alias, igreja é perdida; ficava em frente a minha casa. Começo de noite, entre dez e onze anos:

- Vamos pra igreja.
- Igreja? – eu dizia.
- Bora menino – primos meu, em coro.
- Fazer?
- Você vai gostar.

Lá eu pressentia malícia – meninas de floridos vestidos, de saias abauladas. Rezar? É claro que meus tios sabiam que nós não éramos do Senhor. Nem os sobrinhos homens, nem mulheres. Família namoradeira. No escuro do fundo da igreja, poucas descobertas.
Na sala de casa tinha ma televisão - a criançada se juntava. As importâncias eram estarem juntas. Daí começavam os namoricos, as brincadeiras sem fim.
A cidade tinha duas igrejas. A outra ficava em uma praça, numa área circular, com as flores regadas por um afeminado. Sempre gostava de molhar-nos. Acreditava que alimentava nosso crescer. Antes de chegar lá, passávamos por uma rua que diminuía a largura. No final, na esquina, tinha a casa de um vaqueiro que diziam (diziam!) virar um lobisomem. Morava sozinho, e não percebia que as crianças o temiam. A porta de entrada do casarão tinha uma falha na madeira, que deixava à amostra o corredor. Sentíamos o chão frio, sem nenhuma luz acreditávamos que ele passaria de um quarto para outro, nu – com o corpo cheio de pêlos.
Saí pra caçar patos duas ou três vezes. Seguíamos primeiro sobre o cavalo – robusto que nem de cavaleiro. Quando chagava na margem do rio, era de pé que íamos por dentro d’água. Volume assustava os bichos. Água até o pescoço, arma apoiada no ombro esquerdo, olhar atento ao movimento branco. Matamos alguns, depois desgostei de vê-los cair por entre os galhos. Também não sentia mais fome pelos guisados. Eu tinha pena. Tanta pena que acabei por ter medo até de galo. Achava que eu tinha alguma frescura de bicho. As chacotas precediam o degolar do animal – sina de morte do povo.
Lá o tempo não existia, só manhã e lua. Ambos serviam para iluminar as portas dos botecos – cheio de magrelas amarronzados, com as testas polidas, e uma vazante entre os dentes. Um desses bares viraria uma danceteria:

- Se arrume pra ir com seu primo – meu pai dizia.
- Pronde?
- Dançar. É lá no final da rua. Vai ta cheio de gente.
- E cheio de meninas – dizia meu primo.

Íamos. Percebi que as luzes eram produzidas atrás de uma parede de madeira. Onde papeis coloridos se movimentavam por entre quadrados onde dali eram lançadas as luzes, que vindas de lanternas, eram criadas por um engenhoso mecanismo manual. O dono era esperto, eu é que era desanimado.
As festas lá em casa, regradas a muita bebida e carne, eram sensação na cidade. Aproximavam-se todos da infância de meu pai, acompanhados com os da minha infância. Os curiosos sempre arranjavam um jeitinho de se aproximar:

- Companheiro, ôpa!
- Chegue aqui – dizia meu pai.
- Êita festança.
- Puxe uma cadeira, fique por aqui.
- É, minha mulher já passa por aqui. Num vou demorar muito não.

Daí era só festa. Ao som dos xotes, embalados nos sorrisos infantis, com as cadeiras tanto no quintal quanto na calçada da porta, com a gritaria entusiasmada das mulheres à cozinha, como nas brincadeiras nos quartos com cheiro de pano, como nos cacarejos das galinhas no cercado, como na tristeza das despedidas pra volta à cidade: montei a inocência da minha vida.

arnon gonçalves